Sociedade

“Escalada” de discursos xenófobos e racistas durante a pandemia – e a Internet agrava a ameaça

O secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros adverte para esta “tendência perigosa”. Em março, o RASI já alertava que o aumento do tempo passado online tem sido aproveitado pelos movimentos de extrema-direita para ampliar as bases de apoio. Por Mafalda Silva.

Francisco André, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, afirmou que “a pandemia de covid-19 exacerbou e sublinhou o que falta fazer em termos de direitos humanos, promovendo a desorganização das comunidades e sendo o terreno fértil para a escalada de práticas e discursos xenófobo e antissemíticos”. Na primeira sessão da Conferência de Alto Nível “Proteção contra a Discriminação Racial e Intolerância Relacionada”, organizada pela presidência portuguesa do Conselho da UE, foram destacadas as implicações desta tendência, que acentua a “exclusão social, a estigmatização, daqueles que já estavam em situação vulnerável”, para além de “comprometer a coesão e o desenvolvimento sociais”.

Foi ainda referido que o Governo estabeleceu este ano “um grupo de trabalho composto por peritos e representantes da sociedade civil para avaliar a situação nacional e propor formas de lutar contra o racismo e discriminação”. Francisco André reforçou que “a luta contra todas as formas de discriminação é uma prioridade para o Governo e para a presidência portuguesa” do Conselho da UE e salientou a necessidade de “reforçar uma União Europeia em que todos sejam iguais e recebam um tratamento igual”.

O Relatório Anual de Segurança Interna 2020 (RASI), divulgado em março deste ano, destaca a forma como a crise pandémica e o aumento do tempo de exposição aos meios online têm sido aproveitados pelos movimentos de extrema-direita para aumentar as suas bases sociais de apoio em Portugal. A divulgação de conteúdos de propaganda e desinformação digital procura “galvanizar os sentimentos antissistema e reforçar a radicalização de base xenófoba”, refere o documento. Estes grupos recorrem “a um discurso apelativo da violência e do ódio, num momento em que a sociedade portuguesa é, também, confrontada com fenómenos de polarização ideológica”, como é o caso dos grupos negacionistas da pandemia.

“A divulgação de conteúdos de propaganda e desinformação digital procura galvanizar os sentimentos antissistema e reforçar a radicalização de base xenófoba” Relatório Anual de Segurança Interna 2020 (RASI)

O novo “normal”

Foto: Miguel A. Lopes / Lusa

No dia 6 de outubro de 2019, a extrema-direita conquistou um assento no Parlamento português. O Chega, fundado apenas 6 meses antes e presidido por André Ventura, obteve 1,29% dos votos nas eleições legislativas de 2019 – foi o sétimo partido mais votado dos 21 que contestaram a eleição. Com um discurso objetivamente nacionalista, racista, xenófobo, anti-imigração e machista, o Chega tem vindo a infiltrar-se, com sucesso, na agenda política nacional.

O relatório “Estado de ódio – o extremismo de direita na Europa”, encomendado por três organizações antifascistas e divulgado em fevereiro de 2021, destaca a “normalização” política do Chega em 2020 e alerta para a possível “radicalização das formas de protesto da extrema-direita portuguesa”. Com o agravamento da crise social e económica provocada pela pandemia da Covid-19, a infiltração de grupos de extrema-direita em manifestações e protestos pela melhoria das condições de vida “deverá continuar”.

O mesmo relatório refere seis grupos ligados à extrema-direita em Portugal. Para além do Chega, que é identificado como populista radical de direita, assinala o Ergue-te (ex-PNR), os grupos Escudo Identitário e Associação Portugueses Primeiro, os neonazis Hammer Skin e os populistas de extrema-direita Movimento Zero. Novos grupos têm surgido, com uma violência e radicalização crescentes. Em agosto de 2020, a Resistência Nacional foi responsável por uma manifestação de estilo Ku Klux Klan em frente à sede do SOS Racismo e pelas ameaças feitas às deputadas Beatriz Gomes, Mariana Mortágua e Joacine Katar Moreira, a Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo, e a outras figuras ligadas a movimentos antirracistas, antifascistas, sindicalistas e LGBT.

Perante a polarização da opinião pública, para a qual tem contribuído a atual crise pandémica, a normalização de partidos como o Chega é, avisa o relatório, uma ameaça. Em 2020, o PSD estabeleceu um acordo com o Chega para formar governo nos Açores. Nas eleições presidenciais de 2021, André Ventura arrecadou 11,9% dos votos dos portugueses, tendo ficado em terceiro lugar. O Chega tem elevado as “narrativas-chave” de extrema-direita a “níveis nunca vistos na política” portuguesa desde o fim do Estado Novo – em breve, poderá ser a terceira força política no país.

O crescimento da extrema-direita não é um fenómeno exclusivamente português. O Chega faz parte do Partido Identidade e Democracia, uma aliança de partidos políticos nacionalistas de extrema-direita fundada em 2014, que obteve o estatuto de partido político pan-europeu em 2015. Com membros e associados de 16 países, e deputados europeus em dez Estados-Membros, o grupo indica, como prioridades, a criação de emprego, o aumento da segurança, o fim da imigração ilegal e o combate à burocracia da UE.

A Liga Norte (Lega Nord, em italiano) é um dos membros fundadores do grupo. Com 28 deputados europeus, a Liga é o segundo maior partido em Itália e um favorito da opinião pública. Com uma retórica anti-imigração e eurocética, Matteo Salvini, um dos líderes do partido, é uma figura central do nacionalismo europeu. Enquanto Ministro do Interior (no decorrer de uma coligação com o Movimento 5 Estrelas), Salvini promoveu uma política anti-imigração que bania navios de ajuda humanitária dos portos italianos. O aumento da popularidade da Liga coincidiu com o pós-crise financeira e com o fluxo de migrantes do Norte de África que chegou a Itália em 2016.

Em França, o discurso anti-imigração é encabeçado por Marine Le Pen. A líder da União Nacional (Rassemblement National, em francês), candidata às eleições presidenciais de 2017 e 2022, tem procurado normalizar a extrema-direita junto dos eleitores franceses. Assumida eurocética, Le Pen culpa a UE pelo fenómeno de imigração em massa na Europa, uma posição comum à de outros partidos nacionalistas e de extrema-direita europeus. Fez do movimento dos “coletes amarelos” um pretexto para “infiltrar” a extrema-direita nos protestos antissistema. Tal como Salvini, é uma aliada de André Ventura, tendo visitado Portugal durante a campanha presidencial deste ano.

Um outro aliado de Ventura é Santiago Abascal, líder do partido espanhol VOX. Atualmente a terceira força política do país, o crescimento do VOX, fundado em 2013, coincidiu com a crise migratória em Espanha e com as reivindicações separatistas na Catalunha. Inicialmente focado na oposição às autonomias regionais, o partido tem vindo a alinhar-se com o populismo de direita de outras forças políticas europeias, promovendo um discurso anti-imigração e eurocético.

Na Polónia e na Hungria, o nacionalismo chegou ao poder. Em outubro de 2020, a aprovação de uma lei que torna o aborto praticamente impossível despoletou protestos e confrontos na Polónia – os valores conservadores têm um papel proeminente na agenda política polaca desde que o Partido Lei e Justiça, nacionalista, chegou ao poder em 2015. O Fidesz é o maior partido político da Hungria desde 2010. O governo de Viktor Órban resvala o autoritarismo – a alteração do sistema eleitoral tem permitido a manutenção do poder por parte do partido que assenta numa retórica semelhante à das forças de extrema-direita europeias.

Internet: A arma dos radicais

Recentemente, tem-se assistido a um esforço, por parte das redes sociais e de outras empresas ligadas à internet, para combater a propagação de discursos de ódio, de ideologias extremistas, ou, simplesmente, de informação não fundamentada. São encerrados sites, são banidos utilizadores, são limitados acessos. Em janeiro, o Twitter suspendeu 70 mil contas associadas ao grupo extremista americano QAnon, conhecido pela proliferação de teorias da conspiração. Já o Facebook tem apostado num programa de fact-checking para evitar a propagação de notícias falsas. Será este tipo de iniciativa suficiente para travar a influência da extrema-direita nos meios online? Talvez, mas a capacidade de adaptação destes grupos não deve ser desvalorizada.

Em pleno século XXI, o Ocidente assiste a um fenómeno que não é novo e que deixou a sua marca no passado. Os eleitores, frustrados com o sistema, demonstram preocupações crescentes com a globalização, a imigração ilegal e a diluição da identidade nacional. Em tempos de crise, e enquanto os cidadãos sentirem que há um “vazio” deixado pelas políticas atuais, a extrema-direita vai encontrar apoio. E a democracia vai continuar em risco.

 

Texto de Mafalda Silva. Editado por Laís França.