A lei que define o prazo internupcial tem causado controvérsia nos últimos tempos, pois estabelece que as mulheres têm de esperar 10 meses para voltar a contrair matrimónio, por oposição aos homens, para quem o tempo de espera é de apenas 6 meses. A justificação prende-se com a presunção de paternidade: os dez meses seriam tempo suficiente para perceber se, em caso de gravidez, a criança era do primeiro ou segundo casamento.
Esta lei gerou discussão pelo seu carácter alegadamente discriminatório, para além de ineficaz, pois esse tempo de espera não assegura que a criança seja fruto de um dos casamentos. Está prevista uma excepção: a mulher pode voltar a casar-se após 6 meses, tal como os homens, sob a condição de obter uma declaração judicial que confirme que não está grávida e que comprove que não tenha tido algum filho depois do divórcio. O Bloco de Esquerda sugere o teste de paternidade em caso de dúvida, menos invasivo. Esta solução acabaria com a necessidade de apresentar provas e pedir autorização ao tribunal para voltar a casar. Assim, não havia motivo para as diferenças no tempo de espera, situação que, aliás, já quase não se verifica noutros países desenvolvidos. A questão tem ainda mais relevância num país em que cerca de 70% dos casamentos termina em divórcio.
O Bloco de Esquerda entregou no Parlamento, no Dia Internacional da Mulher, um projecto-lei que defende a alteração ao mesmo, com o objetivo principal de eliminar do Código Civil. O partido tem em consideração que a lei é uma marca da ditadura conservadora e machista do final do século XX. A discussão do projecto deve acontecer em meados de Abril.
O estatuto da mulher no seio da família – o Código Civil de 1966 e o pós-revolução
Durante o Estado Novo, verificou-se um grande retrocesso dos direitos da mulher, particularmente no âmbito do casamento, do qual são exemplos a Concordata de 1940 (que proibia o divórcio) ou a lei que concedia ao marido o direito de exigir o regresso da esposa ao domicílio conjugal, recorrendo à força se necessário. Dada a impossibilidade de se divorciarem, eram frequentes as separações de facto, em alguns casos problemáticas, pois mantinham-se os laços jurídicos entre o casal apesar de separados. Isto significa que, por exemplo, a mulher continuava a precisar da autorização do marido, com quem já não partilhava a vida, para sair do país. O fim da necessidade da autorização conjugal para obter um passaporte apenas se tornou uma realidade em 1969.
A formação de uniões irregulares, após separações de facto, também levantava alguns conflitos legais, sobretudo quanto à legitimidade dos filhos que nascessem nessa nova união. Estes não podiam ser perfilhados pelo pai se este fosse casado com outra mulher, ou seja, este não detinha poder paternal sobre eles nem podia atribuir-lhes o seu nome de família (salvo consentimento da esposa do pai, o que era raro). No caso de mulher em união com um homem que não o pai dos seus filhos, os filhos desta nova união eram considerados filhos do marido. Neste caso, só o marido podia contestar, o que muitas vezes não sucedia e levava a que as crianças fossem registados como filhos de pai incógnito. O Código Civil de 1966 veio pôr fim ao problema da perfilhação pública de filhos ilegítimos, criando uma nova forma de reconhecimento da maternidade ou paternidade, o reconhecimento oficioso. Passou a não ser necessário a declaração ou decisão judicial, mas antes o reconhecimento do facto real por parte do Estado.
Um dos pressupostos do Código era que ambos os cônjuges deviam contribuir, de acordo com as suas possibilidade, para as despesas familiares e que, caso o marido não cumprisse com a sua parte, a mulher podia exigir em tribunal o que lhe era devido. Podia, também, alegar repugnância pela vida comum ou obrigações de ordem profissional para deixar de ter a mesma residência legal do marido. Instaurou-se a comunhão de adquiridos: cada cônjuge conservava os seus bens próprios, sujeitos a partilhar apenas os bens adquiridos no termo do casamento. A mulher passou a poder exercer profissões liberais e a ser funcionária pública (ainda que o marido continuasse a deter o poder de cessar o contrato de trabalho da esposa), a dispor das suas obras literárias e artísticas, a poder movimentar contas bancárias e a tomar decisões administrativas urgentes (esta última apenas em caso de impossibilidade do marido).
Os poderes dos pais em relação aos filhos eram diferenciados. O pai tinha direitos sobre os filhos nascituros (isto é, ainda não nascidos) e era a única figura parental que podia emancipá-los legalmente. Cabia ao pai “prestar assistência moral conforme a sua condição, sexo e idade”, “administrar os seus bens” e “providenciar acerca dos alimentos devidos ao filho e orientar a sua educação e instrução”. Já à mãe competia “autorizá-lo a praticar os actos que por determinação especial da lei dependam do seu consentimento” ou “desempenhar relativamente aos filhos e aos seus bens as funções pertencentes ao marido, sempre que este se encontre em ligar remoto ou não sabido ou esteja impossibilitado de as exercer por qualquer outro motivo”. Isto, na realidade, não se distanciava muito do primeiro Código Civil de 1867, em que podia ler-se “na ausência ou impedimento do pai, faz a mãe as suas vezes”. Atribuía, assim, à mãe alguma autonomia e voz apenas em caso do pai não estar presente ou em situação de exercer o seu papel como chefe de família.
Apesar de existir já alguma preocupação com os direitos da mulher, muito por pressão de uma Europa cada vez mais consciente dos Direitos Humanos e da introdução de medidas que visavam a sua protecção e participação mais activa, a família, tal como a própria sociedade, continuava a ser construída sobre um modelo patriarcal, em que o poder pertencia ao homem, contrariando a crescente corrente de igualdade entre os sexos.

Logo após o 25 de Abril, radicais mudanças fizeram-se sentir. Terminaram as atenuantes especiais para o homicídio cometido pelo marido contra a esposa adúltera, bem como o direito do marido de abrir a correspondência da mulher. Os cônjuges passaram a ter “iguais direitos quanto à capacidade civil e à manutenção e educação dos filhos”. Em 1975 é restabelecido o divórcio. As mulheres deixaram de ver o seu acesso a determinadas carreiras condicionado, passaram a poder trabalhar fora de casa e a exercer actividades sem o consentimento do marido. Nos anos seguintes continuou a crescer a preocupação com a igualdade de remuneração e oportunidades no trabalho, bem como legislação para a protecção da mulher no trabalho, como a licença de maternidade. O direito ao voto passou a ser um direito de todas as mulheres – até aí apenas era concedido àquelas com estudos secundários.
Todas as alterações que tiveram lugar ao longo destes pouco mais de 40 anos de democracia, com importantes vitórias pelo caminho, não são ainda suficientes para impedir que se ouçam vozes a denunciar a discriminação em função do género. A possível alteração deste cenário pode passar pela alteração de leis como a abordada inicialmente, abalando preconceitos profundamente enraizados sobre o papel da mulher na família.