A chegada do novo coronavírus a Portugal ocorreu há pouco mais de um ano. O país atravessou três vagas da pandemia, dois confinamentos gerais e 14 estados de emergência. Até à data, houve mais de 800 mil casos confirmados e foram realizados cerca de 9 milhões de testes à Covid-19.
Estes dados não foram capazes de impedir – ou até certo ponto acabaram por contribuir – para a formação de movimentos negacionistas da pandemia, que no passado dia 20 de março organizaram uma manifestação em Lisboa que reuniu aproximadamente três mil participantes. A maioria dos manifestantes não usaram máscaras de proteção individual, não cumpriram a regra de distanciamento social e protestaram contra a gestão da pandemia no país, em nome de uma maior liberdade individual e social.
Ao longo de três horas, foram ainda escutados o hino nacional e a música “Grândola Vila Morena”. Os participantes ergueram cartazes com frases como “Devolvam a liberdade”, “Deixem as crianças viver”, “O vírus são os média” ou “Costa, Marcelo e DGS: Vemo-nos em Nuremberga”. As críticas eram dirigidas às medidas de restrição impostas pelo Governo e ao tratamento dado aos pacientes não-Covid.
A manifestação foi organizada a partir da internet e inseriu-se numa iniciativa internacional designada de “World Wide Demonstration”, que também organizou protestos em outros países europeus, como o Reino Unido, Alemanha e Suíça.
Dias mais tarde, a 23 de março, foi noticiado que um dos organizadores do protesto tinha testado positivo à Covid-19. O indivíduo não fazia parte de nenhum grupo específico, tendo participado na organização de forma individual. Em declarações ao jornal Observador, Luís Freire Filipe, do Movimento Defender Portugal, confirmou que a pessoa infetada “encontra-se bem, não apresenta sintomas e está em isolamento” e garante que esta só marcou presença no início da manifestação.
Este protesto teve autorização para acontecer e foi acompanhado por uma frota policial, tendo sido reportados três autos por consumo de álcool na via pública. Posteriormente, a PSP afirmou que foi preparada uma queixa-crime contra os organizadores da manifestação pelos crimes de atentado à saúde pública e instigação à violação das normas sanitárias. O jornal Público refere que a abertura de um inquérito é da responsabilidade do Ministério Público.
“Este negacionismo é um saco de gatos”
Face a este acontecimento, as reações não tardaram em chegar. No programa Eixo do Mal, transmitido a 25 de março, na SIC Notícias, Clara Ferreira Alves caracterizou estes movimentos negacionistas como “um saco de gatos que junta desde os antivacinas, aos lunáticos das teorias da conspiração” e ainda “os mais ‘inofensivos’ que são aqueles que acham que isto é um atentado orwelliano”. A comentadora residente acrescentou que o “negacionismo é uma ‘burrada’ com ‘u’ de burro”, visto ser “uma negação da evidência”.
Por sua vez, o colega de painel, Daniel Oliveira, alertou para o perigo da “liberalidade” com que o termo negacionista é usado. O colunista do Expresso considerou que tal uso do termo “contribui para uma polarização que basicamente deslegitima qualquer crítica (…) em relação à forma como as sociedades, como os governos e como os Estados estão a lidar com esta pandemia”. Daniel Oliveira disse ainda que não sabia se todas as pessoas que estiveram presentes na manifestação eram negacionistas e concluiu assumindo que “os negacionistas são aqueles que recusam o consenso científico de cada momento, baseando-se em teorias da conspiração”.
Maria João Marques, num texto da sua autoria publicado no jornal Público, caracterizou esta manifestação de “adolescência serôdia” e defendeu que os participantes protestavam “contra o mundo”. A economista ainda referiu que os manifestantes se consideravam “grandes rebeldes, tão corajosos como (pelo menos) os membros da Resistência na França ocupada da Segunda Guerra Mundial”. No fim, a colunista, de forma irónica, disse que não esperava “menor espírito de sacrifício dos gloriosos negacionistas da vacina da Covid”, pois os resistentes aos nazis estavam dispostos a morrer pela causa.
A desvalorização do combate à pandemia e o contágio negacionista
Pouco tempo depois da primeira vaga da pandemia, em todo o mundo começaram a surgir os primeiros negacionistas. Não era só o cidadão comum que não acreditava no perigo do novo coronavírus e que contestava as medidas de restrição. Chefes de Estado, líderes religiosos e grandes empresários partilhavam todos das mesmas ideias.
Um dos casos mais mediáticos foram as palavras de Jair Bolsonaro. A 20 de março de 2020, o presidente brasileiro referiu: “depois da facada, não vai ser uma gripezinha que me vai derrubar, não”. Apesar de este, em novembro do mesmo ano, ter negado tais palavras, não foi só uma vez que Bolsonaro se referiu à Covid-19 enquanto uma “gripezinha”. Mais tarde, o presidente voltou a desconsiderar o perigo do vírus: “no meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado com o vírus, não precisaria de me preocupar. Nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”.
O antigo presidente dos Estados Unidos, em outubro do ano passado, também não parecia abordar a questão da pandemia com a devida importância e preocupação. Donald Trump afirmou que a razão pela qual o país tinha muitos novos casos diários era pela quantidade de testes que se fazia e ainda referiu que “em muitos sentidos, isso é bom, e em muitos outros, é estúpido. Em muitos aspetos, é muito estúpido”.
O milionário da tecnologia, Elon Musk, foi outra das vozes que procurou fazer-se ouvir, de modo a minimizar o impacto da Covid-19. O dono da Tesla fez questão de manter as suas unidades de produção ativas, alegando respeitar as recomendações sanitárias e, através de um tweet, declarou que “se alguém quiser ficar em casa, ótimo. Deve poder ficar em casa e não ser obrigado a sair. Mas dizer que as pessoas não podem deixar as suas casas e que serão presas se o fizerem, isso é fascismo, não é democracia, nem liberdade. Devolvam a maldita liberdade às pessoas”.
Em Portugal os movimentos negacionistas têm crescido e ganhado cada vez mais apoiantes. As primeiras manifestações que organizaram tinham centenas de participantes e a mais recente três mil – como foi supramencionado. A estas manifestações juntaram-se personalidades portuguesas da área da justiça, representação e música, que contribuem para a difusão destas ideias e para uma maior contestação por parte da população.
“Este tipo de movimentos e questões floresce quando está relacionada com as reações emotivas das pessoas”, afirma Sara Antunes de Oliveira
A subdiretora do jornal Observador, Sara Antunes de Oliveira, no programa Noite 24, da TVI24, referiu que mesmo depois de o jornal publicar um fact-check a desmentir uma notícia falsa relacionada com a Covid-19, a caixa de comentários continuava a revelar desconfiança no trabalho jornalístico, com as pessoas a preferir acreditar “na outra informação, por pouco razoável que ela seja”. A jornalista justificou esta reação com a “emoção”, afirmando que “este tipo de movimentos e questões floresce quando está relacionada com as reações emotivas das pessoas”.
Sara Antunes de Oliveira terminou o seu comentário deixando um alerta para o baixo nível da literacia e da educação para a comunicação social em Portugal, afirmando que “nós não ensinamos às crianças o que são fontes credíveis e o que é que não são”. A subdiretora ainda exemplificou que há uma faixa da população “que se atirou às redes sociais, mais recentemente”. Estas pessoas “têm muito menos literacia digital e, portanto, são muitos mais permeáveis a uma série de informações que não conseguem distinguir se aquela não é uma boa fonte”.
No mais recente Relatório de Segurança Interna (RASI), o Serviço de Informações de Segurança (SIS) destacou a aproximação, em Portugal, de grupos de extrema-direita e “movimentos sociais inorgânicos, nomeadamente dos grupos negacionistas da pandemia”. Esta realidade também é comum em outros países, como é o caso da Alemanha, onde grupos de extrema-direita têm estado por trás de protestos contra a gestão da pandemia.
Será uma questão de comunicação?
Uma das críticas que têm sido apontadas ao Governo está relacionada com a comunicação que este tem vindo a desenvolver. Em alguns casos, as palavras de figuras do executivo acabaram por favorecer a formação de equívocos, tendo o primeiro-ministro confessado que “a culpa é toda minha, porque seguramente foi o mensageiro que transmitiu mal a mensagem”, em relação ao anúncio das medidas de restrição de novembro passado, por exemplo.
Nelson Costa Ribeiro, diretor da Faculdade de Ciências Humanas (FCH) da Universidade Católica Portuguesa, na Edição da Noite da SIC Notícias, referiu que além da crise pandémica há uma outra crise que não é muito falada, a “crise de comunicação e de capacidade de mobilização dos cidadãos para adotar determinado tipo de comportamentos”.
O diretor da FCH-Católica reconheceu que Portugal “não é dos casos mais complexos”, tendo referido outros países europeus onde se verifica “uma incapacidade das autoridades públicas de conseguirem comunicar com determinados grupos da sociedade e fazê-los entender que as decisões tomadas não são sectárias, mas sim para proteger o bem comum”.
“Quando os assuntos são politizados aquilo que acontece é que as pessoas passam a percecionar esses assuntos como sendo assuntos ideológicos e sobre os quais cada um pode ter a sua opinião”, expõe Nelson Costa Ribeiro.
O diretor da faculdade afirmou que a comunicação em saúde pública implica uma “separação clara entre o que é a comunicação em saúde dos especialistas e a comunicação política”, porque “quando os assuntos são politizados, aquilo que acontece é que as pessoas passam a percecionar esses assuntos como sendo assuntos ideológicos e sobre os quais cada um pode ter a sua opinião”, o que também acaba por descredibilizar os especialistas.
Nelson Costa Ribeiro afirmou que a comunicação de crise provocada pela pandemia é “um desafio difícil”, pois é necessário passar a mensagem a públicos diferenciados, implicando a preparação de mais do que uma estratégia de comunicação. Segundo o diretor, “a comunicação não é sinónimo de informação”, uma vez que requer “uma componente relacional, portanto, significa que temos de criar uma credibilidade com a nossa audiência”.
“Já todos sabemos o que fazer para evitar o contágio. Temos, agora, de incentivar as pessoas a aprovar esses comportamentos, a praticá-los e a recomendar que outros façam o mesmo. A estratégia de comunicação deve passar pela mudança das mensagens transmitidas. Mais do que incutir o medo ou a culpa, temos de reforçar a esperança e a união”, declara Andreia Garcia.
Em declarações à agência Lusa, Andreia Garcia, diretora da consultora de comunicação em saúde Miligrama, defendeu uma mudança da comunicação sobre a pandemia, pois “já todos sabemos o que fazer para evitar o contágio”. “Temos, agora, de incentivar as pessoas a aprovar esses comportamentos, a praticá-los e a recomendar que outros façam o mesmo. A estratégia de comunicação deve passar pela mudança das mensagens transmitidas. Mais do que incutir o medo ou a culpa, temos de reforçar a esperança e a união.”
Rui Gaspar, professor na Universidade Católica e psicólogo com especialidade em comunicação de crise, disse à agência Lusa que tem de haver uma concordância entre os especialistas e os cidadãos, procurando compreender ambos os lados. O professor e psicólogo, que presta consultoria à Direção-Geral de Saúde, afirma que “a forma como os especialistas avaliam o risco não é a mesma das pessoas comuns. Enquanto os técnicos se baseiam nos critérios de transmissão ou letalidade da doença, as pessoas concentram-se no esforço que estão a ter, no perigo económico e na incerteza”.
“Como é que um cidadão articula a necessidade do distanciamento social que lhe é solicitado, com a autorização de espetáculos, comemorações, festas e eventos desportivos em que estão milhares de pessoas, nalguns casos até altos responsáveis políticos?”, questiona Jaime Pina.
Já Jaime Pina fala de uma comunicação “muito baseada em números”, dos “briefings da DGS que já ninguém vê”. Em declarações ao jornal Público, o pneumologista e membro da direção da Fundação do Pulmão afirma que “Portugal é dos países com maior iliteracia em saúde”, segundo várias organizações internacionais, e reitera o tiro no pé das “mensagens contraditórias”, capazes de “gerar confusão e dúvidas” e que em “nada contribuem para a coesão comportamental tão necessária no combate a uma pandemia”.
Artigo da autoria de João Múrias. Revisto por Pedro Valente Lima.
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