Política

JOÃO LOURENÇO: ENTRE A RUTURA E O LEGADO?

A eleição de João Lourenço no passado dia 23 de agosto deixou no ar muitas duvidas relativas ao caminho que o sucessor de José Eduardo dos Santos irá seguir: continuar um legado de 38 anos ou estabelecer uma rutura?

As recentes exonerações, ordenadas pelo presidente eleito, estão a ser interpretadas por muitos setores da sociedade angolana como uma “lufada de ar fresco”, após décadas sucessivas de domínio do clã dos Santos, já que são vários os membros da família do ex-presidente afastados dos cargos que exerciam. Estas mudanças podem mesmo ser interpretadas como uma resposta às dúvidas que insistiam na ideia de que José Eduardo dos Santos iria continuar a exercer o seu poder, ainda que na retaguarda. Após quase 4 décadas no poder e com a sua influência espalhada pelos principais setores económicos do país, qual o futuro de Angola no pós Eduardo dos Santos?

Fim do regime de José Eduardo dos Santos

O fim da presidência de José Eduardo dos Santos foi tudo menos inesperado. O agravar do estado de saúde do antigo presidente apenas acelerou o processo de transição, já que os últimos meses do líder africano foram passados entre Luanda e Barcelona, onde realizou “tratamentos oncológicos” sem que nunca se especificasse qual o tipo de patologia que sofre. Do conhecimento público é que foram estas mesmas condicionantes médicas que estiveram na origem da ausência de Eduardo dos Santos na campanha eleitoral, uma vez que esta coincidiu com a deterioração da sua saúde.

No longo período de tempo em que o “arquiteto da paz” esteve no poder, Angola atravessou uma transição demorada que teve como momentos altos o fim da guerra civil, após 27 anos de conflito, e o cimentar da riqueza do país que viu o número de milionários crescer 82% num período de 10 anos, ainda que grande parte da população (20 milhões de habitantes) viva na pobreza.

Em 1979, ano em que José Eduardo dos Santos chegou ao poder, a influência da União Soviética no país ainda se fazia sentir e o marxismo-leninismo eram a bandeira de um MPLA que acabara de perder Agostinho Neto subitamente. No governo de Neto, José Eduardo desempenhou funções como Ministro das Relações Exteriores, após regressar da Rússia onde estudou Engenharia de Petróleo, setor que se viria a revelar chave durante toda a sua governação.

Para além de “riqueza” e “influência”, também a palavra “corrupção” é uma das mais usadas na hora de descrever o regime de Eduardo dos Santos em Angola, considerado um dos países menos transparentes do mundo. As acusações de enriquecimento ilícito pairam sobre o ainda líder do MPLA, que é também acusado de favorecer os seus familiares mais próximos.

Para além destas acusações, vários são os analistas políticos que acusam o antigo presidente de tentar, na fase final do seu mandato, prolongar o seu poder, apontando o Estatuto dos Antigos Presidentes da República de Angola, aprovado pela Assembleia Nacional em junho de 2017, como exemplo. Neste estatuto é assegurada imuniddae, residência oficial, despesas pagas e um salário equivalente a 80% do vencimento do chefe de Estado em funções.

Mas se algum episódio se pode destacar dos 38 anos de governação de José Eduardo dos Santos, é, devido ao seu cariz atual e ligação a Portugal, a prisão dos 15 ativistas , entre eles o luso-angolano Luaty Beirão, que denunciavam as más condições do país em termos de educação, saúde pública, a repressão de liberdades, os inúmeros casos de corrupação e ainda a politização da justiça. Em consonância com esta última denúncia está uma declaração de Luaty Beirão feita durante o seu julgamento: “Vai acontecer o que José Eduardo decidir”.

Eleições de 23 de agosto

2017 marcava oficialmente o final do mandato de José Eduardo dos Santos e após ter declarado em 2013 que estava “há demasiado tempo” na liderança do país, era de esperar que 2017 fosse também o ano da sua despedida. E assim o foi. A 2 de fevereiro o histórico líder do MPLA manifesta publicamente a sua vontade de não se candidatar, não sem antes deixar o nome de João Lourenço escrito como o homem designado para lhe suceder. A data das eleições foi anunciada a 24 de abril, após a aprovação do Conselho da República de Angola, órgão consultivo do chefe de Estado. Porém, a pré-campanha do cabeça de lista do MPLA começou meses antes para que o rosto do candidato se tornasse conhecido da grande maioria do eleitorado, ordens de José Eduardo dos Santos.

Não sendo o candidato oficial do seu partido, a figura de JES pairou sobre toda a campanha e processo eleitoral. As razões que conduziram ao fim de uma liderança de 4 décadas foram discutidas e escrutinadas, nomeadamente no sentido de perceber qual o grau de influência na nova governação do país. Para além da questão do seu débil estado de saúde, a conjuntura económica desempenhou um papel preponderante, já que em 2014 a queda abrupta do preço do barril levou a uma estagnação da economia angolana que nos anos precedentes se afirmara como uma das mais pujantes do mundo.

As ruas de Angola, no último período de José Eduardo dos Santos, foram um autêntico barão político da sua governação e com a economia em desaceleração, a popularidade do governante seguiu o mesmo caminho. O descontentamento da população fez-se sentir e o anúncio de eleições com uma nova cara a representar o MPLA foi interpretado como uma lufada de ar fresco para a população que começava a acreditar na eternização de dos Santos à frente dos destinos do país.

Clã dos Santos

José Eduardo dos Santos tem um total de 10 filhos, tendo atribuido preferencialmente aos mais velhos o comando das mais poderosas empresas estatais. Isabel dos Santos, de 44 anos, é a mais conhecida do grupo de irmãos devido ao poderio económico que alcançou nos últimos anos de governação do pai, estimando-se que a sua fortuna ronde os 3,4 mil milhões de dólares. José Filomeno, por sua vez, era tido como o sucessor natural do pai mas as suas aventuras pelo mundo dos negócios levaram-no à criação do primeiro banco de investimento angolano e à direção do Fundo Soberano de Angola.

Graças a Tchizé dos Santos, terceira filha de José Eduardo, os negócios da família estendem-se a áreas para além da gestão e da banca. Tchizé tem na comunicação a sua principal área de ação e os meios que controla, ou melhor, controlava, TPA 2 e TPA Internacional, assumem-se como os favoritos da população. Também na comunicação social está presente José Paulino dos Santos, que fundou a Semba Comunicações.

Estes são os principais rostos do clã dos Santos que viram os seus nomes no topo das hierarquias dos principais negócios e organizações em que o Estado angolano esteve envolvido nos últimos anos. Paralelamente, foram também estes os nomes que após a tomada de posse de João Lourenço saltaram para as capas dos jornais, acompanhados sucessivamente da palavra “exoneração”.

Fotografia: Jornal de Negócios
Fotografia: Jornal de Negócios

Quem é João Lourenço?

Embora José Eduardo dos Santos tivesse desempenhado a figura de “Sol” da política angolana, o novo presidente está longe de ser um desconhecido da população, uma vez que já chefiou cargos de grande relevância, quer no MPLA quer no governo. Numa primeira fase, combateu pelo exército do MPLA, após um período na União Soviética, onde se formou militarmente e onde viveu durante cerca de 4 anos, entre 1978 e 1982.
Após regressar a Angola foi deputado na Assembleia do Povo, cargo que ocupou até 1992 quando abandonou para passar a desempenhar funções como presidente do Grupo Parlamentar do MPLA entre 1993 e 1998. Cinco anos mais tarde, 2003, novo cargo político, desta vez como 1º vice-presidente da Assembleia Nacional. Lourenço permaneceu em funções até 2014, ano em que foi chamado para desempenhar a função de Ministro da Defesa. A 3 de fevereiro de 2017 é anunciado como cabeça de lista do MPLA nas eleições de 2017.
Mas desengane-se quem acha que as relações entre sucessor e sucedido sempre foram pacíficas. Embora a escolha de João Lourenço tenha partido de José Eduardo dos Santos, o histórico líder angolano foi responsável pela longa “travessia no deserto” que Lourenço viveu entre 2003 e 2014 enquanto vice-presidente da Assembleia Nacional, cargo que lhe fora atribuído como forma de calar as pretenções de poder que começava a manifestar mais intensivamente. A nomeação como Ministro da Defesa em 2014 significava o fim do “castigo” implementado por José Eduardo e uma nova oportunidade concedida a Lourenço para a corrida presindencial.

Exonerações

Findo o período eleitoral, com a vitória do MPLA de João Lourenço, o novo chefe de Estado tomou posse a 26 de setembro numa cerimónia que contou com mais de mil convidados estrangeiros e nacionais. Nos dias que antecederam a investidura, um dos assuntos mais comentados foi o alegado pacto entre João Lourenço e José Eduardo dos Santos, de forma a que o legado e a influência de dos Santos se prolongue durante o maior período de tempo possível.

Contrariamente ao expectável, uma série de decretos assinados pelo novo presidente deixou o clã dos Santos sem o controlo de empresas e áreas estratégicas que antes lhe pertencia e através das quais exerciam o controlo da economia. Inicialmente, a primeira visada começou por ser Isabel dos Santos quando a 15 de novembro, dia em que completava 50 dias de governação, João Lourenço anunciou a saída da filha mais velha de José Eduardo da Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola (Sonangol). Também no dia 15 de novembro foi conhecido o fim do contrato entre o Estado angolano e a empresa Semba Comunicação, responsável pelos dois canais de televisão públicos de Angola (TPA), que tem como principais sócios dois elementos do clã dos Santos: Welwitshea e José Paulino dos Santos.

Ao comando do Fundo Monetário de Angola (FSDEA) está ainda José Filomeno dos Santos, o único filho do ex-chefe de Estado a resistir às mudanças decretadas por João Lourenço que não são exclusivas à família do histórico líder angolano. Outros homens da confiança de ‘Zé Eduardo’ foram também retirados dos lugares que ocupavam, o que de certa forma permitia a perpetuação do seu poder e influência, levando muitos analistas políticos a afirmar que o pacto firmado entre os dois líderes foi quebrado.

Comunidade Internacional

Foram vários os países que se manifestaram aquando das eleições do passado mês de setembro e relativamente às recentes exonerações, vistas por muitos como um virar de página na história de Angola. De acordo com a SIC Notícias, a própria União Europeia, ainda antes do ato eleitoral, envolveu-se numa guerra de palavras com a administração Angola devido à presença de observadores internacionais para acompanharem o decorrer da consulta pública. Inicialmente, foi o próprio governo a contactar as autoridades europeias e a solicitar a sua presença. No entanto, o convite foi feito demasiado tarde, o que impossibilitou o normal trâmite dos aspetos logísticos e o normal decorrer do processo de observação.

No que toca a Portugal, também foram enviados observadores dos vários partidos políticos segundo o Diário de Notícias,  e todos eles concordaram na análise efetuada: o processo decorreu sem incidentes, com celeridade e organização. Já no que diz respeito aos recentes decretos presidenciais e as consequentes exonerações, Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros e representante da diplomacia portuguesa, afirmou em declarações à imprensa estar a acompanhar a situação “com respeito escrupuloso pela soberania de Angola”.

Luaty Beirão, que se tornou uma voz relevante no que diz respeito à situação política angolana, também se pronunciou sobre as mudanças operadas pelo novo presidente: “Se o João Lourenço morresse hoje, eu diria que ele já fez uma revolução” – afirmou. Para o ativista, que, de acordo com o observador, começou por dizer que as eleições de setembro iriam ser “viciadas”, mostra-se agora “surpreso” com aquilo que muitos declaram ser uma nova fase na vida social e política de Angola.