
Processo mediático e complexo
A fase de instrução do processo da Operação Marquês começou, no Tribunal Central de Investigação Criminal, a 28 de janeiro de 2019, sob a direção do juiz Ivo Rosa. A respetiva decisão instrutória, proferida pelo juiz no dia 9 de abril deste ano, causou bastante polémica e gerou muitas dúvidas acerca da forma como os Tribunais têm em conta os factos, as provas e as molduras penais dos vários tipos legais de crime.
Maior enfoque ganhou este processo pela sua elevada complexidade, pelas milhares de páginas, e pela acusação de figuras tão mediáticas como o ex-presidente do BES, Ricardo Salgado; o antigo ministro socialista e ex-administrador da CGD; Armando Vara, o empresário Hélder Bataglia; os ex-líderes da PT Zeinal Bava e Henrique Granadeiro; e Carlos Santos Silva, amigo de infância de José Sócrates, ex-Primeiro-Ministro.
Irão a julgamento apenas 17 dos 189 crimes que constavam na acusação. Além disso, somente 5 dos 28 acusados pelo Ministério Público (19 pessoas e 9 empresas) seguiram, com o despacho do juiz, para a fase de Julgamento
No final, acabaram por ser pronunciados os arguidos José Sócrates (por três crimes de branqueamento de capitais e três crimes de falsificação de documentos), Carlos Santos Silva (por três crimes de branqueamento de capitais e três crimes de falsificação de documentos), Ricardo Salgado (por três crimes de abuso de confiança), Armando Vara (por um crime de branqueamento de capitais) e João Perna (por um crime de detenção de arma proibida).
Custa a muitos crer que estes arguidos tenham sido pronunciados apenas por estes crimes, quando da acusação constam muitos mais, nomeadamente crimes de corrupção (ativa e passiva), bem como crimes de fraude fiscal qualificada: apenas irão a julgamento 17 dos 189 crimes que constavam na acusação. Além disso, somente 5 dos 28 acusados pelo Ministério Público (19 pessoas e 9 empresas) seguiram, com o despacho do juiz, para a fase de Julgamento.
A alguns gera também alguma estranheza o facto de José Sócrates se encontrar neste momento em liberdade quando este estivera, por mais de nove meses, em prisão preventiva, no Estabelecimento Prisional de Évora. Ora, cabe notar que a prisão preventiva, enquanto medida de coação mais gravosa, possui objetivos autónomos e distintos da pena de prisão efetiva.
A verdade é que o Ministério Público, competente pela direção da fase de inquérito no processo penal, entendeu que haveria perigo de fuga e de perturbação do inquérito, dado que teria desaparecido o portátil do Primeiro-Ministro (mais tarde localizado) e de outros objetos, temendo-se que pudesse existir uma ocultação ou um desaparecimento de provas ou a criação de provas artificiais. Para além disso, considerou-se que, dadas as suas possibilidades financeiras, este acabasse por fugir. Foram estes os riscos que foram ponderados nesta fase processual e que motivaram a aplicação da medida de prisão preventiva, prevista no art. 202º do Código de Processo Penal.
José Sócrates regressou a casa na noite do dia 4 de setembro de 2015, mais de nove meses após ter sido detido. O risco de perturbação do inquérito tinha diminuído, daí a decisão do juiz Carlos Alexandre de alterar a medida de coação de prisão preventiva para a prisão domiciliária. A 16 de outubro, foi dada a liberdade ao ex-Primeiro-Ministro, passando este a estar apenas sob termo de identidade e residência, com proibição de sair do país sem autorização prévia e de contactar os restantes arguidos do processo Operação Marquês. Estas medidas de coação prosseguem uma mera finalidade preventiva, e não punitiva.
A fase de instrução teve lugar por requerimento de 19 arguidos e a complexidade do processo evidenciou-se face a alguns dados: “146 volumes, 56.238 folhas, às quais se juntam 4.895 folhas entregues na fase de instrução, que teve mais de 39 horas de alegações (…) [sendo que] foram realizados na fase de instrução 11 interrogatórios a arguidos e inquirição de 44 testemunhas, o que perfaz mais 133 horas.”
Em jeito de explicitação, cabe notar que a fase de instrução é uma fase facultativa do processo penal, que ocorre sob a direção de um juiz de instrução, na qual é decidida se deve haver arquivamento do inquérito ou se deve existir submissão da causa a julgamento (artigo 286.º do Código de Processo Penal), dando-se lugar à prática dos atos que o juiz entenda levar a cabo, sendo sempre obrigatória a realização do debate instrutório (e que neste caso terminou a 2 de julho de 2020).
O juiz Ivo Rosa não descurou do que seria devido, ao deixar claras todas as questões que pudessem suscitar problemas quanto à regularidade da instância, conhecendo de todas as questões prévias e incidentais, em conformidade com o disposto no art. 308º nº3 do Código de Processo Penal. Preocupou-se, portanto, em debruçar-se sobre todas os elementos de natureza processual, incluindo possíveis inconstitucionalidades, que poderiam ser um obstáculo à decisão de mérito neste processo.
Salientou-se a falta de elementos de prova que suportassem os argumentos enunciados pela acusação, sendo que, a este respeito, foi aplicado o princípio do in dubio pro reo, segundo o qual devem ser dados como provados todos os factos favoráveis ao arguido, sempre que surjam dúvidas, apesar de toda a prova produzida
Na prolação da decisão instrutória, as situações dos vários arguidos requerentes da mesma (incluindo José Sócrates), foram apreciadas de forma exaustiva, e cabe dizer que, para muitos, grande parte daquilo que ficou dito pareceu incompreensível e intangível, sobretudo quanto às questões da prescrição de alguns dos crimes (nomeadamente os de corrupção), bem como quanto à formulação da acusação pelo MP, que claramente se mostrou como incoerente e inconsistente para o juiz de instrução. A somar a isto, ainda se salientou a falta de elementos de prova que suportassem os argumentos enunciados pela acusação, sendo que, a este respeito, foi aplicado o princípio do in dubio pro reo, segundo o qual devem ser dados como provados todos os factos favoráveis ao arguido, sempre que surjam dúvidas, apesar de toda a prova produzida.
Tudo isto prova que, no processo penal, cabe não apenas atender à verdade material, mas também aos elementos formais que permitem determinar, com rigor, a verificação dos factos, atendendo-se igualmente à proteção dos direitos fundamentais dos envolvidos, tendo de ser sempre procurado um equilíbrio difícil entre estes diferentes elementos, de forma a atribuir-se a cada finalidade do processo penal a máxima eficácia possível.
Daí se retira a impossibilidade de, por ex., se proibirem determinados métodos de prova e se fazerem corresponder às respetivas provas sanções de nulidade, não podendo estas ser utilizadas, em harmonia com o art. 126º CPP. Uma outra finalidade do processo penal que, muitas vezes, entra em conflito com as já referidas corresponde ao restabelecimento da paz jurídica posta em causa com a prática do crime, e que, neste processo mediático, assume, evidentemente, uma especial importância.

Dos Crimes de Corrupção
Na decisão instrutória lida pelo juiz Ivo Rosa, “caíram” todos os crimes de corrupção que estariam em causa quanto aos casos do Grupo Lena, do Grupo Espírito Santo/PT, e ainda do Vale do Lobo. O juiz admitiu a existência de indícios de corrupção no caso dos empréstimos de Carlos Santos Silva a Sócrates, mas a prescrição impediu que os arguidos fossem pronunciados por esse tipo legal de crime.
O primeiro crime de corrupção referido pelo Código Penal e que consta do seu art. 372º, refere-se ao recebimento indevido de vantagem, baseando-se numa corrupção em razão das funções exercidas (ou por causa delas), havendo a aceitação de uma vantagem patrimonial ou não patrimonial que não é devida. Quanto a este crime, a moldura penal pode ir até aos 5 anos de prisão. Este crime pode assumir forma passiva (nº1) ou forma ativa (nº2). Pode considerar-se o crime de recebimento indevido de vantagem como o delito-base dos crimes de corrupção, atendendo às alterações legislativas ocorridas em 2010.
A corrupção passiva acaba, desta forma, por encontrar-se prevista nas normas dos artigos 372.º, n.º1 e 373.º, estando a corrupção ativa prevista na norma do 374.º
“O ato unilateral de oferecer, dar, solicitar ou receber uma vantagem, é suficiente para existir corrupção. O acordo entre as partes constitui uma circunstância agravante do crime.”
“Pratica um crime de corrupção ativa a pessoa que, diretamente ou através de outra pessoa, para seu benefício ou para benefício de outra pessoa, faz uma oferta, promessa ou propõe um benefício de qualquer natureza, em troca de um favor. Pratica o crime de corrupção passiva, a pessoa que aceita receber dinheiro ou outro benefício de qualquer natureza, para cumprir ou omitir certos atos.”
José Sócrates encontrava-se acusado por vários crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, já que este os teria praticado enquanto exercia funções de Primeiro-Ministro [art. 3º nº1 d) e art. 17º n.º 1 e 19°., n.ºs 2 e 3 da Lei nº 34/87, de 16 de Julho]. Carlos Santos Silva também foi acusado pelo MP pela prática do mesmo crime, além de um crime de corrupção ativa. Joaquim Barroca Vieira Rodrigues fora acusado por um crime de corrupção ativa de titular de cargo político, relativamente ao arguido José Sócrates, com mediação do arguido Carlos Santos Silva e em benefício do Grupo LENA.
Na decisão instrutória, salientou-se, quanto ao arguido José Sócrates, que este “sabia que, por força do cargo de Primeiro-Ministro que ocupava, estava obrigado a estritos deveres de isenção e imparcialidade e aos princípios gerais da prossecução do interesse público, da legalidade, objetividade e independência. Apesar disso, o arguido José Sócrates sabia e quis agir da forma descrita, violando a autonomia intencional do Estado, a troco da promessa e entrega de contrapartidas patrimoniais, que sabia não lhe serem devidas, para conduzir a atuação do Governo.”
No entanto, e como já foi dito, a “ausência de indícios suficientes” e a existência de crimes que já se encontravam prescritos “aquando da dedução da acusação” determinaram o arquivamento dos autos em quanto a estes crimes, fundamentado pelo juiz.
Está claro que, não obstante todas estas cabidas fundamentações, a desconsideração destes crimes trouxe, indubitavelmente, uma grande revolta popular, não se cumprindo com a importante finalidade de restabelecimento da paz jurídica do processo penal.
Dos Crimes de Branqueamento de Capitais
No ordenamento jurídico português, o crime de branqueamento consta do art. 368º-A do Código Penal, sendo que “o branqueamento de capitais é o processo pelo qual os autores de atividades criminosas encobrem a proveniência dos bens e rendimentos (vantagens) obtidos ilicitamente, transformando a liquidez decorrente dessas atividades em capitais reutilizáveis legalmente, por dissimulação da origem ou do verdadeiro proprietário dos fundos.”
Não se mostrando indiciado o alegado crime de corrupção, fica afastada a existência do crime de branqueamento, já que “sem crime precedente não há objeto da ação típica do branqueamento, precisamente porque sem ele não há dinheiro “sujo” que possa ter sido “lavado” ou “branqueado”
Vários arguidos vão a julgamento pela prática deste crime, apesar de também este ter “caído” várias vezes. O crime de branqueamento pressupõe a prática de um crime precedente, o que impediu, no caso, que mais crimes de branqueamento fossem imputados aos arguidos, na medida em que dependeriam da prática de crime de corrupção: “uma vez que na configuração da acusação o crime de branqueamento em causa tem com crime antecedente a imputada corrupção, a insubsistência de tais acusações arrasta necessariamente consigo a falta insuprível de dois dos momentos nucleares do tipo penal de branqueamento: o crime precedente ou antecedente e a vantagem “ilícita.””
Não se mostrando indiciado o alegado crime de corrupção, fica afastada a existência do ilícito precedente e, por consequência, o crime de branqueamento, já que “sem crime precedente não há objeto da ação típica do branqueamento, precisamente porque sem ele não há dinheiro “sujo” que possa ter sido “lavado” ou “branqueado”.
O que diz o Ministério Público
O MP já pediu a nulidade da decisão instrutória, por considerar que existiu uma alteração substancial dos factos, sendo que uma fonte ligada ao processo terá dito à agência Lusa que o pedido de nulidade “tem a ver com a descrição que consta na decisão sobre o crime precedente, que é a corrupção e que conduz ao branqueamento” de capitais. “Do branqueamento de capitais faz parte o crime precedente, isto é, o facto ilícito de base”, sendo que “os factos que descrevem o crime de corrupção mudam e ao mudar, muda também o crime de branqueamento em causa”.
Caso o juiz Ivo Rosa rejeite o pedido de nulidade da decisão, o MP pode recorrer desse despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa.
A corrupção em democracia
Além do mais, quanto ao fenómeno da corrupção, que cada vez mais, hodiernamente, assume protagonismo, cabe dizer que, nas palavras do Dr. Luís Menezes Leitão, “uma estratégia de combate à corrupção não pode passar por ideias vagas e genéricas, tendo de assegurar verdadeiras medidas de controlo e repressão da corrupção e de imposição de transparência na atividade política.”
Deste modo, torna-se essencial, sobretudo, a priorização da prevenção da corrupção, ao invés de uma repressão tardia. Uma prevenção eficaz permite um melhor controlo sobre este fenómeno perturbador da comunidade, passando também pelo reforço “[d]os funcionários de investigação criminal, hoje consideravelmente reduzidos, em ordem a poderem realizar investigações eficazes (…) [criando-se] um sistema de inspeções frequentes a todos os serviços do Estado, em ordem a que qualquer suspeita de corrupção possa ser eficazmente detetada e reprimida.”
Artigo da autoria de Laura Teixeira. Revisto por Marco Matos e José Milheiro