Crónica Cultura

UM AZUL DE TODOS NÓS

A companhia de teatro amador de Gondomar in skené foi fundada em 2009 e, desde então, tem desenvolvido um trabalho notável, não só pelo esforço em manter peças em cena, mas também pela dinamização de tertúlias, workshops, oficinas de formação, eventos culturais e ações de solidariedade. Destaca-se, igualmente, o esforço em adaptar o repertório dramatúrgico ao público-alvo, facto que reforça o objetivo de desenvolver um projeto coerente e com significado.
Olga Machado. DR.
Olga Machado. DR.

A peça em questão, Azul Longe Nas Colinas, de Dennis Potter, foi levada a cena pelo grupo de teatro in skené. A encenação esteve a cargo de João Ferreira.

O frio e o fumo que se instalam na sala dão origem a uma neblina inicial que nada auspicia de bom. É com esta mise en scène inicial que somos recebidos no auditório de Gondomar. Nos primeiros minutos de peça, a estranheza toma conta de nós ao vermos adultos a representar crianças de sete anos, em brincadeiras banais da idade, num bosque durante as férias de verão. Rapidamente nos deixamos levar pela ficção e aceitamos a fantasia e poeticidade do azul da infância. É para lá que somos levados.

Dennis Potter afirma que esta é a peça mais simples que escreveu, quer na forma, quer no conteúdo. Ironicamente, de simples este texto nada tem. Ao longo da peça oscilamos entre o riso (destaque-se o brilhante desempenho de Emanuel Rocha na pele de Willie) e a seriedade perante o que vamos ouvindo. Esta aparente simplicidade de conteúdo dará lugar a uma série de questões à medida que nos deixamos levar pelas brincadeiras inquietas das personagens. Os jogos pueris dão origem a outros jogos complexos.

A dualidade criança/adulto com a qual somos, desde logo, confrontados revela-se extremamente problemática. Estas crianças brincam às guerras, aos pais, às mães, aos enfermeiros, reproduzindo o que pensam ser a vida dos adultos. A infância é-nos apresentada como um espaço que não é necessariamente de inocência. As constantes alusões ao comportamento dos soldados da segunda guerra mundial, como modelo de bravura imposto, revelam a necessidade de ver e compreender o mundo imitando a realidade dos mais crescidos. Estes surgem como heróis. Mas é também dos adultos que as crianças recebem os medos. O medo está, de resto, sempre presente na peça. É uma nuvem constante a pairar sobre as colinas.

Para além do jogo de idades, cria-se igualmente um outro jogo: a duplicidade do tempo e do espaço. Somos levados a imaginar a sociedade e a mentalidade da época através das crianças que são, na verdade, os mensageiros. A peça não fica presa a esse espaço nem a esse tempo, esta revela-se atemporal por estar irremediavelmente ligada ao comportamento humano. A tragédia estende-se, igualmente, aos animais na peça. Todos eles estão em sacrifício: o esquilo, o cão Rover e, vítima em todos os momentos, o pato. O Donald.

O momento em que os atores se dirigem ao público, referindo inclusive a palavra “auditório”, concretiza a passagem a um terceiro espaço. O terceiro elemento, o Outro, o que observa, torna-se parte integrante do jogo de culpa/inocência.

Sentimos todos os momentos de angústia. O cenário e a música desempenharam um papel fundamental para a construção de um espaço e de um tempo carregados de tragédia, que acabou por atravessar o auditório e nos transportou não só para os anos 40, mas para a realidade de cada um de nós. A nossa imaginação transportou-nos para o que poderia estar para lá das colinas, os pupilos mensageiros conseguiram induzir a construção de um outro cenário, o dos adultos.

A culpa que atravessa toda a obra revela-se, assim, numa tríade. Não só a culpa dos adultos por transmitirem modelos e valores que as crianças reproduzem, mas também a culpa que este grupo de crianças terá de carregar pelo pacto de silêncio acerca do que aconteceu a Donald. O terceiro elemento, o espetador, fecha a tríade pela cumplicidade que carrega.

Em suma, todos acabamos por ser agentes de inocência e de maldade pelas ações que praticamos e os papéis que representamos e, no final, sabemos que “há caminhos da nossa alegria aos quais não sabemos voltar” porque é inevitável que assim seja.

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