Cultura Multimédia

A Minha Vida Dava Um Filme: do Spotify para o palco do Hard Club

Há mais de dois anos, no dia 27 de agosto de 2018, Joana Miranda, na companhia de Tomé Ramos, fez nascer “A Minha Vida Dava Um Filme”, podcast semanal com convidados no qual, partindo do cinema, se fala da vida e da ligação entre os dois. Entretanto, já saiu Tomé Ramos (host do podcast Mais Do Que Uma Vez) e entrou Inês Gonçalves para o papel de sidekick. Segunda-feira (dia 17) e terça-feira (dia 18), 117 episódios depois, apresentaram-se ao vivo, no Porto, no Hard Club com sala cheia e convidados de renome.

Artigo da autoria de: Tiago Sousa
Fotografias por: Joana Rita Cirne

Depois de duas noites em Lisboa no Teatro Villaret com o cartoonista Hugo Van der Ding e a apresentadora Inês Lopes Gonçalves, A Minha Vida Dava Um Filme ao vivo chegou ao Porto e contou com a presença de Francisco Geraldes, jogador de futebol e a rapper portuense Capicua.

Em ambas as noites, o toque das apresentadoras fez-se sentir até nos momentos que antecederam as suas entradas. Ao burburinho próprio da entrada na sala juntou-se uma playlist de hip-hop preparada por Joana Miranda, numa sonoridade que ambientava o público para conversas que passaram pelo existencialismo habitual das duas, cinema, literatura e, até, novelas brasileiras.

A primeira noite assumiu um registo leve. Inês Gonçalves, antes ainda da chamada do convidado ao palco, aproveitou para congratular a avó, aniversariante naquela segunda-feira. Feita a homenagem a Maria Inácia, chegou Francisco Geraldes, descrito pelas apresentadoras como o “futebolista ousado que lançou um livro de poesia aos 26 anos”.

Fotografia retirada do Instagram de Inês Gonçalves

A conversa começou com o tema da própria apresentação do convidado: a “audácia de escrever um livro de poesia”. O jogador e autor falou sobre o processo de criação poética. Sinto, Longe, Tarde (título da obra) nasceu da sua “doença existencial” extrapolada por escrito para um bloco de notas. O existencialismo do livro de Geraldes transportou-se para a conversa e a pergunta “O que é que eu sou?”, embalada pela série BoJack Horseman, virou tema central.

Rapidamente, e foi assim a noite toda, o tema mudou. Falou-se sobre a importância do dinheiro para a felicidade, de Deus, de religião ou política numa conversa, ao contrário do que se esperaria pelo peso habitual dos assuntos, poucas vezes séria e muito descontraída onde a vontade de animar o público se sobrepôs à vontade de adensar os assuntos.

Como todos os convidados, o jogador trouxe alguns filmes que serviriam de mote para conversa: V for Vendetta (2005) que, inclusive, serviu de inspiração para uma das suas tatuagens e Fight Club (1999). Serviriam de mote, mas, na realidade, rapidamente se dissiparam na conversa e não foram mais relembrados.

Para terminar, como em todos os quatro espetáculos ao vivo, os três fizeram um jogo que ressuscitou a temática cinematográfica na conversa. Num desafio que consistia em reconhecer o nome e o ator do filme a partir de um excerto de um qualquer grande clássico do cinema quer internacional, quer português, foram postos à prova os conhecimentos dos três em palco que se mostraram capazes de reconhecer filmes como Forrest Gump (1994), Trainspotting (1996) ou Pátio das Cantigas (2015) e as vozes de Tom Hanks, Ewan McGregor ou Miguel Guilherme.

Para a noite seguinte, “as mais poderosas apresentadoras de podcast em Portugal” (assim apresentadas por Catarina Moreira) tinham encontro marcado às 19h00 com Capicua. E se há quem se possa queixar da falta de substância da noite anterior, a rapper portuense, autora de discos como Sereia Louca (2014) ou Madrepérola (2020), trouxe o outro lado da moeda deste podcast. Trouxe cultura, conhecimento, experiências e captou, do primeiro ao último segundo, os espectadores numa conversa pincelada quase sempre de momentos de pertinência e importantes reflexões.

A conversa começou no passado de Capicua no mundo do grafiti. A portuense, com um passado como writer, falou sobre a importância da sua participação no movimento da street art na sua visão sobre a cidade e para a entrada no mundo hip-hop.

“Guardo muito boas recordações do grafiti porque quem é do grafiti tem outra relação com a cidade, e com o espaço em geral, porque é como se lesses a paisagem uma camada acima, uma camada onde as outras pessoas não estão a prestar atenção. Ficamos a reparar nos grafitis que outras pessoas fizeram nas casas abandonadas, nas fábricas abandonadas, nas autoestradas além de que temos uma relação com a cidade a uma hora em que não está mais ninguém na rua.”

Da street art avançou-se para a cultura hip-hop, da forma como se pulverizou o sentido de comunidade na cultura pela chegada da música aos ouvidos das massas e ao mainstream.

“O hip-hop antes era uma tribo, hoje em dia quase toda a gente gosta de um rapper, de uma banda, mas claro que há sempre um núcleo duro. Se fizeres uma festa de hip-hop aqui no Hard Club vais encontrar essas pessoas que ainda são a tribo, mas num festival se vires um nome mais mainstream essas pessoas vão-se misturar com uma multidão enorme de pessoas que gostam de hip-hop de forma menos militante. Mas faz parte da evolução, não sou saudosista.”

Capicua trouxe para esta noite de terça-feira três filmes brasileiros: Sal da Terra (2014), Aquarius (2016) e A Que Horas Ela Volta (2015). Porém, foi do primeiro que partiu e continuou quase toda a conversa do resto do podcast. O filme de Sebastião Salgado levou a conversa para outros terrenos. “O resgate da trégua para vermos a esperança” é a mensagem que Capicua traz do filme e que convidou às reflexões das três mulheres em palco sobre o tratamento da história em relação às navegações e às pessoas escravizadas, a importância da arte na mudança da sensibilidade e empatia das pessoas, sobre o posicionamento público dos artistas nas causas sociais ou a participação feminina em espaços de debate.

Antes do jogo conclusivo, houve tempo ainda para falar de guilty pleasures e sobre a ligação da rapper com o Brasil onde recordou tempos de estúdio no Brasil com os rappers brasileiros Rael e Emicida e o português Valete aquando da gravação do álbum Terra Franca e o seu consumo de novelas brasileiras.

No desafio final, Joana, Inês e Capicua tentaram, com mais ou menos sucesso, adivinhar a que filmes e atores pertenciam os excertos ecoados nas colunas do Hard Club. Patrick Swayze no filme Dirty Dancing (1987), Jorge Corrula e Soraia Chaves em O Crime do Padre Amaro (2005) ou Julia Roberts em Notting Hill (1999).

À conversa com o JUP no final do espetáculo de segunda-feira, as opiniões das protagonistas foram dissonantes sobre a sensação de subir ao palco pela primeira vez. Inês Gonçalves diz-nos que foi “bom para si, para receber o feedback automático do público”, mas Joana Miranda mostrou, em rescaldo, uma posição pouco confiante na análise dessa noite: “concentro-me muito na performance e por isso avaliei até ao mais ínfimo detalhe, por exemplo, se digo uma piada e não se riram ou houve momentos em que senti que não tinha assunto”.

Em duas noites, interessantes de formas diferentes, os “filminhos” (nome não-oficial dos ouvintes de A Minha Vida Dava Um Filme) saíram do Hard Club com as expectativas correspondidas numa experiência que tirou as lisboetas do Spotify e as trouxe à cidade do Porto. Mantendo o registo íntimo e sincero, Joana Miranda e Inês Gonçalves transportaram cada espectador para dentro da casa onde, semanalmente, gravam o podcast e deixaram o palco com uma sensação que, com certeza, dificilmente esquecerão.

 

Artigo da autoria de: Tiago Sousa
Fotografias por: Joana Rita Cirne